Por onde passou o ‘Homem Novo’ forjado na Luta?! Texto III

A coberto das mais inverosímeis acusações: Conluio com as forças reaccionárias, suspeitas de corrupção, tentativa de desestabilização política, intentonas e outras, o Poder abriu as portas das suas prisões e fez jus de todo o seu arsenal de violência.

As primeiras vítimas do meticuloso processo de intimidação mencionado na anterior narrativa, foram os militares e os paramilitares guineenses que combateram ao lado dos portugueses, e muito em particular os chamados Comandos Africanos cujo primeiro batalhão foi formado em 1969 na cidade de Bafatá. De Setembro a finais de 1974 muitos deles foram ainda vistos circular livremente em Bissau e presentes em suas residências de onde eram vistos sair. Porém ao longo do ano de 1975 muitos desses, pelo menos os mais conhecidos na capital, se tornaram gradualmente menos visíveis. Por conta dos rumores veiculados pela ‘Rádio Tabanca’ especializada em fazer circular, com cautela e ao abrigo de ‘ouvidos suspeitos’, os mais discretos acontecimentos ocorridos na capital, se foi sabendo que o ajuste de contas do Poder com essa classe de militares tomava inquietante proporções através de prisões arbitrárias efectuadas pela calada e a coberto do crepúsculo da noite. Esse eficiente método de comunicação foi permitindo a divulgação dos nomes dos que iam sendo levados para uma ‘viagem sem regresso’.

Sem a veleidade de pretender isentar, e muito menos ilibar esses militares das responsabilidades que se lhes pudessem ser atribuídas sobre eventuais crimes cometidos contra populações indefesas durante os últimos anos de confrontação armada, não se pode entretanto deixar de responsabilizar o PAIGC e o Governo de então pelo facto de não terem procurado averiguar e definir os diferentes graus de responsabilidade e julgar esses militares em função do envolvimento de cada um nos crimes repertoriados. Acabaram todos por serem medidos pela mesma bitola: dos simples milícias, passando pelos soldados e finalizando nos sargentos e oficiais de diferentes patentes. Todos pagaram o mesmo preço, sem que tivessem sido julgados. A condenação é a conclusão, a decisão final baseada num julgamento. Precede o julgamento. Não pode antecedê-lo. Condenar sem julgar é uma incongruência. Constitui um flagrante atentado aos preceitos da  jurisprudência.

A República da Guiné-Bissau foi reconhecida a 17 de Setembro de 1974 pela Organização das Nações Unidas (O.N.U.) como Estado Membro de pleno direito. Na mesma data e enquanto Estado Membro fez-se signatária da Declaração Universal dos Direitos Humanos (D.U.D.H.) adoptada e proclamada pela Resolução 217A(III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948. Essa pronta adesão à Declaração Universal dos Direitos Humanos estaria, a priori, consentânea com os nobres desígnios da Luta Armada de Independência Nacional.  No entanto, torna-se evidente que esses métodos de intimidação preconizados e postos em prática pelo PAIGC  através da sua desmedida e descomplexada violência eram, e ainda são, radicalmente contrários aos fundamentos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Face a essa constatação, não resta senão reconhecer que esses actos discricionários constituiram na altura e ainda hoje constituem, flagrante violação de vários artigos da D.U.D.H. com especial incidência dos seguintes: Artigo V, Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante.; Artigo IX, Ninguém será arbitráriamente preso, detido ou exilado.; Artigo X, Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. 

É óbvio que o teor da Declaração Universal dos Direitos Humanos era, no contexto do imediato pós Guerra de Independência,  dificilmente assimilável diríamos ‘intragável’ para o PAIGC um Partido cujos militares, militantes e dirigentes enfrentaram as agruras, a dureza e as vicissitudes de mais de uma dúzia de anos de guerra. A violência impregnada na memória desses combatentes não permitiu que fossem respeitados os preceitos dessa Declaração Universal.

Entretanto, o número estimado de vítimas efectuadas no seio dos Comandos Africanos é impressionante. Avulta-se em alguns milhares. Eis os nomes de alguns dos mais graduados, aos quais o ‘Homem Novo’ recusou o direito de se inserirem na nova sociedade guineense: Adremane Sisseko, Justo Nascimento Lopes, Zacarias Saegh, Armando Carolino Barbosa, Tomás Camará, Anastácio (Didi) Ferreira, Cicre Marques Vieira, Abdulai Queta Jamanca, Marcelino Moreira, Marcelino Pereira. A esse impressionante número de vítimas se adicionam, por terem merecido idêntica sorte, umas largas dezenas de membros da extinta A.N.P., Acção Nacional Popular, um dos ‘instrumentos’ políticos do General Spínola no quadro da sua ‘Guiné Melhor’. Com umas largas dezenas de omissos, ficam os nomes de Aubiara Sambú, ex-Presidente da Comissão Feminina e Cesário Alvarenga, um influente membro do Secretariado. A incapacidade ou a relutância em promover a Concórdia Nacional sempre foi um verdadeiro ‘calcanhar de Aquiles’ para o PAIGC!

Não se contentando com esse impressionante número de vítimas, a máquina demolidora do PAIGC ainda pôde enriquecer a sua tenebrosa estatística com a vida de Baticam Ferreira, uma conhecida e respeitada figura dentre as autoridades tradicionais de então e as duma infinidade de funcionários dos serviços administrativos denominados ‘cipaios’. FORAM TODOS FUZILADOS SEM JAMAIS TEREM SIDO JULGADOS.

Jazem algures. Alguns palmos sob a terra que os viu nascer! 

Diz-se que, “A grandeza de um Homem define-se pela sua capacidade de se reconciliar com o inimigo”. Impunha-se uma apaziguada mas firme e determinante política de ‘reconciliação nacional’ entre os guineenses feitos inimigos durante a guerra devido a opostas e radicais opções políticas por uns e por outros assumidas. Esse ideal ou objectivo poderia ter sido realizado se tivesse havido pela parte do PAIGC, que detinha o Poder total e incondicional, vontade e maturidade política para conduzir esse importante processo. Ao recusar peremptoriamente a via da ‘Concórdia Nacional’, o PAIGC perdeu uma oportunidade ímpar de se afirmar pela via mais elevada, pela magnanimidade. Porém e lamentavelmente, os nobres ideais só encontram adeptos na côrte dos grandes: Ghandi, Mandela, Luther King e bem poucos mais….

Esse património de endógena e permanente violência tem  substancialmente fragilizado a solidez dos alicerces da Nação Bissau-guineense. O aguerrido PAIGC da época colonial que chegou a ser depositário das mais modestas esperanças de todo um Povo, metamorfoseou-se no pós independência em algo surrealista, indefinível, draconiano. Para quando uma profunda catarse e o acto de contrição do PAIGC? Quanto tempo será necessário para que esses horrores se dissipem da memória colectiva de um povo? Para quando um Secretário-Geral do PAIGC com coragem e hombridade suficientes para reconhecer esses crimes infligidos ao Povo da Guiné-Bissau e pedir em nome do PAIGC, publicamente e sem titubeações: PERDÃO!

A próxima narrativa empenhar-se-á em fazer-vos conhecer as medidas coercivas ‘medicadas’ à sociedade civil. Sejam pacientes!

3 pensamentos sobre “Por onde passou o ‘Homem Novo’ forjado na Luta?! Texto III

  1. Destaco a simplicidade e abrangência da frase muito bem descrita no teu texto: “A grandeza de um Homem define-se pela sua capacidade de se reconciliar com o inimigo”. É importante que nos façam o retrato daquilo que foi a nossa história recente, diga-se pós independência. Bem-haja João.

  2. Obrigada pela seriedade, lucidez e coragem manifestada nas análises que vens fazendo. Quem me dera que mais e mais guineenses pudessem ler e reflectir, sobre o que nos levou ao ponto onde estamos .

  3. “A grandeza de um Homem define-se pela sua capacidade de se reconciliar com o inimigo”. Como o Luis Vicente, essa frase também me marcou. Lembro de ter visto há uns anos atrás um documentário sobre Nelson Mandela. Lembro-me de ter ficado impressionado com o homem (ainda mais) quando soube que ele tinha conseguido instaurar logo no seu primeiro mandato, as “comissões da reconciliação”. Um exercicio avassalador, que obrigava torturador e torturado a sentarem na mesma mesa e, a juntos, pensarem como iriam conviver no futuro. Dizer que é emocionante é ficar bem longe do gigantismo do que lá se fez. Aconselho vivamente a tentarem ver esse documentário.

    Por outro lado, esse processo da Guiné me lembra tantos outros que se jogam numa vala comum que tendo a chamar da Corrupção do Poder. É simplista? Provavelmente. Mas é assim que funciona, infelizmente… 1-mundo-melhor.blogspot.com.br/2011/02/corrupcao-do-poder.html

    Coragem nunca duvidei que tivesses, pai. Continua!

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