Por onde passou o ‘Homem Novo’ forjado na Luta?! Texto IV

Quanto à sociedade civil, o Poder despoletou uma virulenta pressão psicológica sobre todos quantos beneficiando dum estatuto sócio-cultural que lhes conferia alguma visibilidade no seio das populações dos centros urbanos e não só, pudessem de algum modo ofuscar o brilho e o protagonismo pretendidos pelos ‘artesãos’ do novo Poder. Uma bem elaborada estratégia de ‘demolição de Egos’!

O PAIGC e o Governo fizeram da prisão de Brá a sua mais importante ‘arrecadação’. Nela se deu guarida umas poucas centenas de cidadãos, como hábito, condenados sem jamais terem sido submetidos a qualquer tipo de julgamento. Uma absurdidade. E ainda pior! Ao fim de meses e anos de detenção arbitrária, eram libertos sem direito a qualquer explicação e muito menos a indemnizações pelos danos causados no plano: físico, moral e económico. Sem quaisquer traços de pudor, era-lhes dito: Estão livres. O PAIGC decidiu perdoar-vos. Sem mais….

A grande maioria das pessoas detidas constituía uma excelente amostragem da pejorativamente denominada ‘pequena burguesia urbana’. Oportuno também se fazer saber que na mesma altura foi reactivada a prisão de Carache, na Região Bolama-Bijagós, ‘especializada’ em prisioneiros de delito comum. Essas medidas draconianas foram gradual e  inquestionavelmente, distanciando e esbatendo as esperanças numa política de Paz e Concórdia Nacional tão necessária, quanto imprescindível para um consistente e durável desenvolvimento sócio-económico do País.

Por ‘Dever de Memória’, Tatitataia conseguiu recolher  informações em fontes dignas de crédito e elaborar uma lista não exaustiva dos muitos que foram, por razões que a ‘razão’ desconhece, abusivamente privados de liberdade. Mas o que importa frisar e tornar público em largas parangonas, é que essa tenebrosa estratégia de ‘institucionalização’ da sujeição com particular incidência sobre as populações dos centros urbanos, foi orquestrada por aqueles que enfrentaram a violência de uma Luta armada na esperança de poderem elevar um dia, quando livres e independentes, o estandarte da LIBERDADE. Paradoxal!

Condenados sem culpa formada e detidos sem jamais terem sido julgados, o que constitui uma aberrante violação dos mais elementares valores e princípios da jurisprudência, em todas as suas vertentes.

Permitam-nos mencionar alguns indivíduos que foram presos e sujeitos á mórbida intolerância dum Poder discricionário e manifestar o nosso mais profundo respeito pelos que entre os citados nos deixaram para sempre, e alguns muito prematuramente: Dr. Manuel Gardette Correia, António Carvalho, Fernando (Lima) Voss Wahnon, Pascoal D’Artagnan Aurigema, Joaquim Tavares Moreira, Claudio Daniel Mendes da Silva, Francisco (Chico) Correia,  Marcelino (Tchótchó) Delgado, Helder (Dédé) Delgado, Zinha Vaz, Olívio Mendes, António Lacerda, Paulo Barros, Alexandre Miranda, António Augusto Oliveira (Tony) Marques, Aquilino Medina, Miguel Bichara, Ninaber, Manuel (Manecas) Brito e Silva, Cécil Miranda, José Manuel Miranda, Paulo Cardoso, José Carlos (Zeca) Alves, Fernando Parente, Rui Fachina, Zeca Fachina, Rui Brito e Silva, Francisco ‘Yamaha’, Sabá Kalil, Infamará Mané e os muitos, muitos mais, que a memória não guardou registo.

Mas impôe-se diferenciar as causas ou as motivações que engenharam essas detenções.

Para uma grande maioria dos citados, a única causa plausível desses encarceramentos arbitrários repousa na total, descomplexada e desinibida indiferença com a qual esses indivíduos ‘presenteavam’ o novo Poder. Referimo-nos a pessoas que continuaram praticando a actividade profissional que sempre exerceram mantendo-se completamente alheias e á distância de tudo quanto envolvesse política. Viviam indiferentes à radical mudança ocorrida no País.

No entanto, é importante salientar que essa ‘classe’ de detidos não fazia parte das verdadeiras preocupações do núcleo duro dos Serviços de Segurança do Estado. No fundo, essas detenções constituíram um ‘presente’, um ‘bonus’ concedido  por esse núcleo, como forma de reconhecimento pelos prestimosos serviços diligentemente prestados pela mencionada escumalha social travestida em revolucionários ‘de ocasião’, vulgo ‘bufos’, exímios e inveterados delatores de gente inocente.

Essa escória social orbitando o Poder, prestava-se a engendrar sempre que a ela se recorresse, uma variada gama de acusações artesanais de que uma segurança de Estado tanto necessita, sobretudo em regimes dictatoriais. E muitos, senão a maioria, foram detidos a coberto dessas acusações artesanais fabricadas por essa escória de delatores.

Uma segunda categoria era constituída por indivíduos reconhecidos pelas suas competências disfrutando de um nível de vida compatível com as suas responsabilidades profissionais. Esses indivíduos deixavam transparecer uma manifesta  renitência em aceitar qualquer tipo de sujeição ou subserviência ao Poder político. Uma posição que evidentemente não era do agrado dos novos senhores do Poder. Podemos citar como exemplo para essa categoria alguns quadros dos serviços aduaneiros, do Banco Nacional e alguns pequenos comerciantes. Essa recusa em prestar visível subserviência foi seguramente o ‘móbil’ que os levou ao encarceramento. A gota de água que fez transbordar o copo… 

Mas as duas categorias acima mencionadas não constituíam de modo nenhum o cerne das preocupações da verdadeira ‘intelligentsia’ do Poder pois não reuniam condições para se afirmarem  como opositores e tampouco davam sinais de qualquer ambição política.

Identificamos uma terceira categoria, bem mais restricta, formada pela primeira dúzia dos mencionados, com particular relevo para os três primeiros: Dr. Gardette Correia, Fernando (Lima) Voss Wahnon e António de Carvalho,  guardando o devido respeito pelos restantes. Esses três, pelas suas capacidades de liderança eram capazes, se eventualmente interessados, de mobilizar seguidores e apoiantes, tanto no plano interno quanto externo. Porém, nunca e ninguém desse reduzido grupo esteve comprovadamente envolvido em qualquer tentativa de desestabilização de que foram acusados. A notoriedade desses indivíduos era extremamente mal acolhida pelo Poder.

Essa primeira dúzia e bem pouco mais, encarna os que observando o ‘desenrolar dos acontecimentos’ também se sabiam cuidadosamente observados. Por disporem de reconhecida aceitação e respeitabilidade na capital e nos principais centros urbanos, dotados de um mais refinado sentido crítico e finalmente por se terem refugiado num silêncio absolutamente ‘ensurdecedor’ aos ouvidos dos novos patrões, acabaram por se tornar, por todas essas extremamente incomodativas e ‘preocupantes’ razões, vítimas duma intensa e obstinada animosidade da parte do Poder.

Difícil pronunciar quanto ao grau de violência física e psicológica ‘medicada’ a cada um dos citados reclusos. Porém, o nome do empresário Fernando (Lima) Voss Wahnon circulou por todo Bissau como sendo uma das vítimas que suportou o tratamento mais desumano sob o ponto de vista da violência física utilizada pelos agentes da Segurança de Estado durante os interrogatórios.

Consta que o médico Dr. Gardette, sentiu-se na obrigação de alertar os responsáveis pelas torturas de que a continuarem essa ‘medicação’ de violência sobre o detido Wahnon, o mesmo não tardaria a sucumbir. Esse detido foi periódicamente pendurado pelos pés e sujeito a brutais espancamentos a ponto de sangrar pela boca e pelo nariz. Esse Senhor, falecido há bem poucas semanas em Portugal, foi na altura alvo de larga admiração pela sua inquebrantável firmeza estóicamente demonstrada do primeiro ao último dia de detenção. Paz à sua alma!

Tudo indica que esses agentes especializados em tortura  foram psicológicamente ‘formatados’ para agirem em conformidade com esses procedimentos. A República Checa formou excelentes quadros nesses domínios…

Constituíria uma imperdoável lacuna no escopo da presente narrativa não mencionar os agentes da Função Pública na sua globalidade e a sua classe de enfermagem em particular.

Esses dedicados profissionais  souberam capitalizar através das suas reconhecidas competências no exercício das suas funções, um enorme prestígio popular nomeadamente em Bissau e nos principais centros urbanos do interior do País. Esse prestígio muito mal tolerado e uma manifesta resistência à vassalagem política, fizeram da Função Pública a primeira classe social urbana a entrar em aberto conflito de interesses com o Poder.

Essa confrontação  encontrou raízes em duas inflexíveis posições: A primeira pela recusa em aceitar transferir para o País o montante das suas reformas adquiridas pelo tempo de serviço prestado à Função Pública portuguesa; a segunda por terem igualmente recusado, com maior incidência na classe de enfermagem, a paridade de categorias com os seus homólogos  formados durante a Luta armada se considerada a abismal diferença entre os dois grupos, em termos de competência e experiência professionais.

Como resultado desse recorrente clima de guerra conduzido pelo famoso programa de rádio baptizado de ‘Kôrda sîntido’ no qual os convidados eram vergonhosamente ridicularizados e ainda nos habituais comícios públicos de onde provinham insultos do género de ‘catchúres de dúss pé’, ‘catchúres de túga’ e outros do mesmo calibre os  quais toda a gente sabia a quem eram dirigidos, a quási totalidade desses profissionais envolvidos nessas confrontações por se sentirem profundamente decepcionados, chocados com essas ofensas e sobretudo receosos pelo futuro, resolveu emigrar para Portugal onde, porque de reconhecida e comprovada competência, foram fácilmente integrados nos efectivos da Função Pública portuguesa.

Uma vez mais o dito ‘Homem Novo’, pela sua obstinação em impor a sujeição e o medo às populações e pela sua total incapacidade em desenvolver uma política conducente a mobilizar as forças produtivas do País, privou a Guiné-Bissau de beneficiar da competência e dedicação profissional dos seus próprios filhos sobretudo num período em que esses atributos não deveriam ser negligenciados. Como norma entre esses tribunos, o bom-senso não conseguiu impor-se!

Tatitataia tem mais a dizer-vos. Saibam ser pacientes!

 

 

 

 

 

 

 

6 pensamentos sobre “Por onde passou o ‘Homem Novo’ forjado na Luta?! Texto IV

  1. Ao criador deste blog”Tatitataia”,desejo a continuacao do bom informe,que a todos aqueles que sao,os saudosos e sacrficados filhos da Guine,que tiveram que abandonar o seu “tchon”,afim de,conseguir uma vida melhor e em paz,sem o medo de como acordar amanha… esta proporciando.So peca sim,ou talvez nao,por por mais informe acerca das grandes e enormes atrocidades cometidas,apos independencia e em nome da liberdade e do bem do povo?…subscrevo,tudo o que tem relatado,pois sou conhecedor de grande parte desses acontecimentos.

    Obrigado por essas recordacoes,que ferem e magoam muito,mas e a historia que temos.Penso,que so a nos os saudosos,dira alguma coisa,…mas talvez,possa servir para memoria futura.

    No Pincha…?

  2. Caro João,

    É impossível ficar-se indiferente a estes relatos, aquilo que o seu narrar cuidado deixa por dizer chega a ser revoltante só pelos fatos em si. Torna-se ainda mais desesperante perceber que este período obscuro e os seus métodos prolongam-se até aos dias, talvez outros alvos, outros métodos?, mas com o mesmo objetivo: eliminar tudo que possa “ofuscar o brilho e o protagonismo pretendidos pelos ‘artesanos’ do novo Poder”.

  3. O meu irmão Rui ( já falecido, talvez pelos maus tratos que lhe foram infrígidos), foi um dos que sofreu às mãos destes ditos dirigentes, apenas porque era cunhado do Rebordão de Brito!
    Que a Paz encontre todos os que padeceram e forças a quem as denuncia!!

  4. Até que enfim aparece alguém com coragem para denunciar as barbaridades que se cometeram e ainda se cometem nessa terra maravilhosa que é a Guiné-Bissau. Os que amam de verdade aquele chão, cada vez que vem a lume estas verdades, morrem um pouquinho. A minha esperança é que as gerações vindouras saibam tirar as devidas lições e ajam em conformidade.

    1. Tio Manecas,
      A sensação que eu tenho é que a geração seguinte, na sua maioria, se divide em dois drupos:
      – Aqueles que definitivamente abandonaram o sonho.
      – Aqueles que querem perpetuar o modelo.
      – Acredito que exista um terceiro grupo de utopistas, uns poucos que voltaram e mantêm a fé acesa, o desejo genuíno de ver a Guiné-Bissau deixar de ser notícia na secção de guerra, assassinatos, tráfico de drogas etc dos telejornais, e lutam por isso. A esses desejo genuinamente que consigam e que não sejam “acidentados” ou “assassinados”.
      Eu pertenço definitivamente ao primeiro grupo. Não voltarei, não incentivarei ninguém a voltar, antes pelo contrário.

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