Por quanto mais tempo?!

Por uma vez um Tatitataia disco-jóquei.

Tatitataia tem o imenso prazer em vos fazer ouvir no fim do presente texto e em vídeo, os clássicos mais relevantes da música popular da Guiné-Bissau, país o qual, parafraseando Blaise Pascal, 1623-62: por razões que a razão desconhece se transformou num inenarrável paradoxo.

Corrupção e impunidade de mãos dadas e em invejável harmonia com governantes e governados, um sistema de ensino pelas ruas da amargura, sem saúde pública, sem justiça, sem paz social,  e parecendo orgulhar-se da total ausência de quaisquer infra-estruturas de saneamento básico, designadamente, recolha e tratamento de lixo, esgoto, drenagem de águas pluviais, entre outras num ambiente escabroso de ruas esburacadas em que há muito o asfalto cedeu lugar a um amontoado de terra vermelha!!!

E não falemos no clima de permanente instabilidade política…

Mas por mais inverosímil que vos pareça esse país ainda consegue dar guarida a um considerável número de pessoas que vivendo principescamente, não se sentem minimamente chocadas e muito menos afectadas por essa colectânea de desleixos e irresponsabilidades!!!

Também é merecedor de um reparo especial o facto de um país como a Guiné-Bissau, de vocação eminentemente agrícola e com mão de obra maioritariamente composta por camponeses, não ter apostado numa agricultura mais comprometida em assegurar a tão necessária e ambicionada autosuficiência alimentar, preferindo ao invés especializá-lo na cultura do cajú, um produto tradicionalmente vulnerável à flutuação de preços no mercado internacional.

Esse cenário faz lembrar o rol de nefastas consequências geradas pela má aplicação da conhecida ‘Green Revolution’ no país de Mahatma Gandhi num passado não muito longínquo. Entre as mencionadas nefastas consequências, o êxodo campo-cidade figura como sendo o primeiro responsável por uma infinidade de problemas socioeconómicos ainda hoje não sanados!!

Essa cajumania de filiação bissau-guineense veio semear a instabilidade no seio da mão de obra inicialmente vocacionada às culturas tradicionais como o arroz de sequeiro, o conhecido n’pam-pam, o fundo, o milho em espiga, o milho bacil, a mancarra ou amendoim…, a mandioca, o inhame e em actividades como a colheita de regimes de dendém (o nosso chabéu!), a tecelagem e outras mais.

Que se tenha entretanto em conta que esse infeliz projecto não só desactivou grande parte dessa mão de obra quanto acabou por provocar o seu êxodo em direcção às zonas urbanas. Abandonam o campo onde sabem produzir, e aglomeram-se nos centros urbanos onde não estão qualificados para produzir. O resultado é clássico e amplamente conhecido: desordem social e delinquência, entre os mais nocivos.

E com o quinto decénio batendo à porta, permitem-se o luxo de não terem ainda definidos, que objectivos e quais as estratégias para qualquer futuro, seja ele: a curto, a médio ou a longo prazo!!! Fica tudo dependente da magia dos irans…

O quanto não é doloroso constatar em cada amanhecer, olhares de crianças escrutinando céus e horizontes procurando indícios de melhores dias e uma população que não esconde um enorme sentimento de frustração e insegurança alimentado por esse desfilar de manhãs despidas de esperança.

E é nessa pátria vitimizada por algumas décadas de desmandos para todos os gostos e feitios que uma caterva de pseudo-governantes continua apostada em recusar ao povo guineense o mais elementar dos direitos: o direito à paz e ao progresso. Mas esse povo saberá, como no passado, forjar energias e arregaçar mangas “pa finkanda purmêru dúbi di ki kassa ke nô mîsti kumpu”, como enfatizou o saudoso Zé Carlos.

Tatitataia entretanto recusa as vestes de promotor de fatalismos sobretudo durante uma quadra onde as famílias se juntam num clima de paz e harmonia para festejarem o Natal e não só…

Pois é com esse espírito de festa que Tatitataia deseja a todos os bissau-guineenses e respectivas famílias, no país ou na diáspora, uma quadra festiva com saúde, muita paz, muita alegria, mantendo-se sempre acesa a esperança em melhores dias como nos incita o nosso amigo Ernesto Dabo nas suas palavras impregnadas de encorajamento: “Ka nô tchôra péna Djussé, ka nô tchôra péna…..”.

Tatitataia não pode deixar fugir esta oportunidade sem formular sinceros votos de um 2017 pleno de realizações positivas para cada família guineense e sobretudo para o estóico povo da Guiné-Bissau. Certo que quarenta anos é já algum tempo…

Mas quantas mais décadas serão necessárias para que se decida mudar de rota e de timoneiros? Cansado está o povo guineense de ouvir esse estribilho: barco kána n’kadja…, quando na realidade esse pobre barco continua há umas longas décadas estagnado no ancoradouro, aguardando outros ventos, outras marés, destros marinheiros e adequados instrumentos de navegação… 

Com esse repertório de irresponsabilidades acumuladas, acreditamos inadiável o momento de exigir que seja prestada, sem apelo nem agravo, a devida atenção ao povo guineense!!!!!

Atenção mais que devida a esse povo que continua na expectativa de ver alvorecer no horizonte esse radioso futuro há seis longas décadas propalado por esse mundo fora e copiosamente prometido pelos auto-proclamados melhores filhos da nossa terra…

Recordo-me ter ouvido no pós independência uma senhora que já não está entre nós…, dizer a um membro de família regressado de Conackry: bô bai ku bardádi, bô riba ku mintida. Essa frase, por expressar uma indesmentível verdade, é merecedora de especial reflexão.

E a finalizar eis o novo Tatitataia feito disco-jóquei a fazer-vos ouvir as vozes mais expressivas e ouvidas da Guiné-Bissau.

Essas vozes ganharam espaço e dimensão não só pelos seus  timbres bem peculiares e pela excelência em outros parâmetros de qualidade, mas sobretudo por terem sabido dar justificada e merecida notoriedade aos maiores clássicos  da música popular bissau-guineense.

José Carlos Schwarz, Si bu sta dianti na Luta: composição do próprio Zé Carlos.

Ernesto Dabo e Karyna Gomes, Mindjeris di panu pretu: letra de Armando Salvaterra.

Diria que as palavras constituem uma espécie de lenitivo às angústias, às dores, aos sacrifícios, aos acidentes e incidentes de percurso, muito resumidamente: amenizam o período entre a génese do sonho e a concretização do mesmo. Esse longo período de construção… As vozes, essas, nutrem a esperança!

São esses artistas e esses clássicos soberbamente interpretados que irão proporcionar ás nossas tatitataianas e aos nossos tatitataianos alguma satisfação nos seus momentos de lazer.  E será ao longo desses momentos que nos veremos confrontados com aquela saudade, diria antes nostalgia…, dos tempos daquele Bissau de outrora…, de rosto lavado e perfumado,  cidadezinha bonita e limpa.

Dessa cidade que num passado um nada distante, sempre soube forjar razões que lhe permitissem mostrar-se orgulhosa dos seus jardins bem cuidados, das suas acácias, das suas ruas e avenidas alcatroadas, dos seus edifícios trajados de cores garridas, e como não mencionar a sua acolhedora marginal, entre o porto de Pidjiguiti e a Alfândega. Orgulhosa de tudo isso e seguramente de muito, de muito mais que isso…

Entretanto e a respeito “daquele Bissau de outrora…, de rosto lavado e perfumado,  cidadezinha bonita e limpa”…, tem estado omnipresente uma questão bastante incomodativa a qual ninguém tem sabido responder: quais as raízes, o móbil desse clamoroso desamor por essa cidadezinha bonita e limpa de outrora, paulatina mas progressivamente desfigurada de 1974 a esta parte?!

Só responde quem souber…

Bem hajam!

Tatitataia voltará a estar convosco. Saibam ser pacientes…

14 pensamentos sobre “Por quanto mais tempo?!

  1. Bom dia.  Boas Festas Feliz Natal e 2017 com saúde paz amor e o que for necessário à nossa Guiné para que aquele povo possa usufruir de vida digna.  Um abraço 

  2. Somente para dizer um muito obrigado pela reflexão e que o próximo ano nos traga venturas. Um beijão e um forte e amistoso abraço.

  3. Olá, João.
    Fabuloso post o teu. Pena que os responsáveis pelo “Estado da Nação” não o leiam e não façam um exame de consciência.
    Um Bom Natal e um Bom ano para ti e para todos os seguidores de TATITATAIA.
    João Firmino

  4. Obrigado pelos Votos de Boas Festas! Desde já os retribuo. Mais agradecido fico pela partilha da reflexão, tão necessária neste tempo de urgentes decisões de mudança! Reflexões com a marca de quem atravessou meio século de esperanças e desilusões e preserva a memória como fonte de inspiração para alimentar a esperança, tão necessária para vitalizar os obreiros de hoje e de amanhã. Forte abraço. JLF

  5. Desta vez, não resisti em partilhar na minha página do facebook, com o seguinte teor:
    Em que estou a pensar?
    Que poucos lêem num país nosso, onde se precisa de ler para saber. Que, do lido hoje, registei, sublinho e enfatizo:
    «FICA TUDO DEPENDENTE DA MAGIA DOS IRANS…
    …tempos daquele Bissau de outrora…, de rosto lavado e perfumado, cidadezinha bonita e limpa…um país como a Guiné-Bissau, de vocação eminentemente agrícola ……uma população que não esconde um enorme sentimento de frustração e insegurança…Cansado está o povo guineense de ouvir esse estribilho: barco kána n’kadja…pátria vitimizada por algumas décadas de desmandos para todos os gostos e feitios que uma caterva de pseudo-governantes…O resultado é clássico e amplamente conhecido: desordem social e delinquência, entre os mais nocivos…Com esse repertório de irresponsabilidades acumuladas, acreditamos inadiável o momento de exigir que seja prestada, sem apelo nem agravo, a devida atenção ao povo guineense!!!!!…forjar energias e arregaçar mangas “pa finkanda purmêru dúbi di ki kassa ke nô mîsti kumpu”…»
    Que ninguém que ame a Guiné-Bissau deixe de ler o ‘POR QUANTO MAIS TEMPO?!’

    BOAS FESTAS Tonton.

  6. Boa tarde, João! Um santo Natal e Bom Ano de 2017 para ti também. Que a nossa Guiné -Bissau venha a conhecer melhores dias!!! Obrigada pela tua reflexão.

  7. Obrigado nha Garandi. Eu li, como sempre, com muita sofreguidão. Deus lhe deu esse dom de narrar a sua presença num episódio de forma natural que leve o leitor a se inserir no contexto. “Abo i un griot” que não se revela. Mas creio que isso tudo é fruto de vivência e de ensinamentos que recebemos dos nossos país e mentores que souberam desenvolver e cultivar a arte de bom viver em comunidade. Por essa razão que nos aceitavamos uns aos outros sem barreiras e preconceitos. Esta é a razão da aproximação que teve com os companheiros de diferentes matizes sociais no Liceu e Escola Tecnica da Guiné-Bissau.

  8. Já lá vai o tempo em que sonhava e acreditava num futuro risonho para a Guiné, país que me acolheu em 1975 e de que fiz meu e ao qual me dediquei de corpo e coração até que se tenha prescindido da minha colaboração por razões que até hoje não me foram comunicadas. Não obstante, é com o coração partido que acompanho a situação do país temendo as consequências que daí possam advir para o povo guineense. Enfim…

  9. Caro João,
    Saúdo-te por mais este excelente texto que volta a um tema que devemos reflectir, a situação da Guiné -Bissau. Ontem escrevi um comentário que hoje vi que desapareceu . . .
    Lendo um blog que sigo, Praça do Bocage, deparei com um poema e uma reflexão de António Gusmão que tomo a liberdade de abaixo transcrever, e que, na minha modesta opinião, tão bem exprimem o que este teu texto evoca.
    Um grande abraço
    Mário

    “Nós, na «tradição dos oprimidos (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para estoirar o tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma), outra vez” (Manuel Gusmão, Uma Razão Dialógica. Ensaios sobre literatura, a sua experiência do humano e sua teoria, 2011, p. 371)

    UMA PEDRA NA INFÂNCIA

    Põe uma pedra

    uma pedra sobre a infância

    Para que de vez se cale essa respiração

    contida suspensa no escuro

    Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre

    essa infância essa fala ininterrupta essa

    falagem que falha e promete e inventa

    os sonhos e as promessas o riso sem porquê

    Para que de vez se interrompa a esperança esse

    mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:

    Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa

    que é a infância, as vozes da noite do poço.

    Apaga a infância isso que falta sempre à chamada

    e para sempre trocou já os desejos e os medos.

    Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio

    as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.

    Para que se cale de vez essa respiração que se ri

    na cara da morte, nos olhos do enviado de deus

    recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre

    a infância e ouve a erva a folhagem que cobrem

    o céu em ruínas,

    Também então havia uma pedra no canto do quarto

    Ali onde a noite começava, era uma pedra e depois

    crescia, petrificava-se no seu coração de pedra

    dividia-se e eram várias crescendo; ocupando

    todo o espaço do sono, do sonho do mundo,

    Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos

    que de pedra ficavam e o grito era uma pedra

    que na garganta subia contra a outra pedra,

    O próprio ar golpeado era e dividia a voz

    pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.

    Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma

    outra infância de que possas recordar-te.

    Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:

    nada acontece, Não há

    nenhuma voz na voz dos condenados.

    (Migrações do Fogo, 2004)

  10. Obrigado, caro João Galvão. É uma análise muito realista do que é agora a nossa terra. Nada mais oportuno do que a proximidade do virar do ano para chamar a atenção para aquilo que entra pelos olhos adentro de todos embora haja quem continue a fazer vista grossa. Um Feliz Natal e que o Novo Ano nos traga dias mais radiosos. Um abraço.

  11. É supostamente simples dizer obrigado por qualquer razão, mas ante factos, nada mais distante do devido. Receber tamanha carga de sabedoria, verdade, amor e convicção, num texto que deixa folga no espaço de uma folha, coloca o obrigado numa situação de insuficiência ou incapacidade de dar expressão ao reconhecimento. Em termos de elemento comparativo, julgo que qualquer um de nós poderá referir-se a livros com centenas de páginas, que não conseguem erguer-se à estatura desta rara jóia/prenda, natalícia, que o João quis brindar à sofrida alma guineense, neste Dezembro de mais de ano e meio de humilhação, imposta por gente vazia de sensatez e sentimento de dignidade nacional. Assumo que obrigado não me chega para agradecer ao Galvas, meu singular amigo, por este legado paradigmático de amor e auto-estima, que nos oferece. Beneficiário da prerrogativa que a nossa amizade me assegura, em jeito de aplauso ao autor e obra, ordeno: Tens que ESCREVER, ESCREVER, SEMPRE, PORQUE A NOSSA ESPERANÇA PRECISA ENCURTAR CAMINHO. Mantenhas

  12. Estou farto de ser ignorante em termos tecnológicos. Tatitataia merece-me mais do que respeito. Merece o meu e o amor de todos os que conhecendo ou intuindo a nossa realidade sócio/política e económica se revêm nos temas contundentes com que o Galvas nos vem deliciando faz tempo. Tatitataia ganhou prestígio e exuberância e transpôs as fronteiras do que é mesquinho e irrelevante para se projectar como um processo pedagógico de que muitas das nossas cabeças pensantes carecem para a promoção de uma mudança radical de mentalidades. A verdade simples e transparente que percorre a narrativa de João Galvão Borges é aquela verdade que definitivamente não se vislumbra no País de Cabral e nos seus pseudo-iluminados dirigentes. E nada mais belo quanto apaixonante do que a simplicidade com que o Galvas nos empolga e cativa. Meu abraço, irmão colaço, tão forte quanto o volume da tua coragem e irreverência. TavaresMoreira

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